segunda-feira, setembro 12, 2005

Começar é sempre o mais difícil...

Uma folha em branco


Artur olhava irritado para a folha em branco. Precisava de desenhar a capa para um livro, com urgência. O prazo que a editora lhe tinha dado estava a terminar e a folha continuava vazia. Não adiantava ficar ali especado a olhar. Pegou no casaco e decidiu ir dar uma volta para arejar. Levou um bloco no bolso, não fosse a inspiração apanhá-lo desprevenido.

Caminhou à beira rio, observando os casais que namoravam, enroscados nos bancos de jardim. Aquilo não ajudava muito, o livro era do tipo policial, nada tinha de romântico. Na realidade, fazia uma ideia muito precisa do que queria mas a imagem não lhe surgia nítida. Pretendia desenhar apenas uma parte de um rosto feminino, formas misteriosas, sem serem demasiado explícitas. Estava farto de ver revistas de moda mas os rostos fotogénicos das manequins não o convenceram. Afinal, uma áurea de mistério não era assim tão fácil de aparecer.


A noite encontrou-o num bar movimentado, desta vez a olhar para um copo cheio de vodka. O ruído abafado das conversas entrecruzadas faziam-no sorrir discretamente, quando apanhava uma frase mais caricata. Estava prestes a desistir e regressar a casa quando reparou numa jovem que, sentada a um canto, escrevinhava num pequeno caderno. Alheia à confusão geral, a rapariga olhava, de vez em quando, para um casal mais afastado e continuava a escrever entusiasticamente. O seu ar compenetrado causou-lhe uma certa inveja. Como gostaria de estar no lugar dela, sentado naquela mesa, a desenhar a imagem perfeita.


Encaminhou-se para a saída, mas sem pensar, mudou o rumo e dirigiu-se à mesa da rapariga. Foi recebido com um olhar meio intrigado, meio irritado com a interrupção. Os olhos verdes dela questionavam-no abertamente sobre a ousadia de se intrometer num momento particular de inspiração. Pediu desculpa e, timidamente, perguntou-lhe o que estava a escrever.

A primeira abordagem não correu bem, por isso, resolveu ser honesto, e contou-lhe o seu dilema. Tinha dois dias para desenhar a capa perfeita para um livro e não conseguia arranjar inspiração. Desta vez conseguiu chamar a atenção dela, que solícita, ouviu o seu desabafo e até se mostrou compreensiva. Artur descreveu-lhe o enredo do livro, na esperança de encontrar uma nova abordagem.

Os olhos verdes brilhavam, com malícia, quando ela lhe deu algumas sugestões picantes. Entre risos e piadas, Lúcia fechou o caderno e resolveu ajudá-lo. O interesse dela parecia ser genuíno e muitas das sugestões que fez eram até plausíveis. Por algum motivo, Artur queria saber a sua opinião, e fez um esforço para impressioná-la. A meio da conversa, reparou que ela tinha um rosto bonito, delicado, onde os olhos verdes sobressaíam e dominavam. Contou-lhe a sua ideia, de desenhar os traços de um rosto feminino, as formas implícitas revelando o mistério que o livro encerrava.

Nesse momento, quando ela o elogiou pela ideia, levado por um impulso, Artur tomou coragem e pediu-lhe que o deixasse desenhá-la. Lúcia, apesar de lisonjeada, recusou. Nada que ele lhe pudesse dizer a demoveu. Depois, Artur ainda tentou pedir-lhe um contacto, mas ela deixou bem claro que não estava interessada em envolver-se com um artista, ainda mais, um artista sem inspiração.

O tom mordaz com que ela se despediu deu-lhe a energia necessária para criar. Chegou a casa e sentou-se resoluto em frente à folha de papel vazia. Não dormiu nessa noite, desenhando as várias nuances do rosto de Lúcia, da forma como as recordava. Temia que de manhã já não as visualizasse tão nitidamente.


O resultado final deixou-o satisfeito e aliviado. Por pouco não conseguia ultrapassar o drama da folha em branco, um medo que o perseguia desde que decidira enveredar pela carreira de artista. Aquele projecto de escritora, armada em intelectual, nunca saberia a ajuda que lhe tinha dado. Os traços dela eram quase imperceptíveis no desenho, mas foram um bom ponto de partida.


No dia seguinte, dirigiu-se à editora, ansioso por mostrar as suas propostas. Ficou ainda mais ansioso quando soube que o autor do livro estava lá também. Qual não foi o seu espanto quando entrou na sala e se deparou com Lúcia, confortavelmente instalada. Tentou disfarçar a ansiedade, mas tudo desmoronou assim que soube que ela era a autora do livro.

Colocou os desenhos em cima da mesa e afastou-se, certo de que ela ia detestar o que ele tinha feito. Para seu espanto, Lúcia teceu tantos elogios que ninguém se atreveu a criticar. Saiu da editora aliviado mas confuso. Lúcia saiu logo atrás e correu para o alcançar.

Queria pedir-lhe o número de telefone. Agora já podia. Afinal, o seu método para acabar com o medo da folha em branco tinha funcionado e ela merecia uma recompensa. A sua técnica do artista despeitado resultava sempre para ultrapassar qualquer bloqueio criativo...

quinta-feira, agosto 25, 2005

Uma sedução criativa


Nunca é tarde para mudar...

As velas no bolo apagaram-se suavemente. Adelaide, enquanto soprava, pensava que eram demasiadas. Os seus filhos tinham-se divertido a colocar exactamente 45 velas no bolo. Sentia-se constrangida com a atenção que a festa de anos estava a fazer recair sobre ela. Preferia uma coisa mais íntima mas o marido e as crianças insistiram. Quando os últimos convidados saíram, Adelaide começou a arrumar a confusão que era a sala, Duarte e as crianças foram-se deitar, sem mesmo perguntarem se precisava de ajuda. Ela não estranhou, ao fim de 20 anos de casamento, estava habituada a essa omissão deliberada. O facto de ser o seu dia de anos não alterava nada.

No dia seguinte foi presenteada com um almoço surpresa, pelas suas colegas da repartição. A maioria delas era mais nova do que Adelaide e pareciam ter uma noção algo desfasada do que era ter 45 anos e casada há 20 com o mesmo homem. Entre as prendas estavam umas roupas interiores provocantes, um par de algemas e até um chicote. Como se ela alguma vez tivesse coragem de se vestir assim para seduzir Duarte. Aliás, nem se recordava da última vez que o conseguira seduzir. A rotina instalara-se nas suas vidas e nenhum deles conseguia afastá-la, a bem da verdade, nenhum tentara.

Adriana, a sua filha mais velha, abriu os sacos, curiosa, assim que Adelaide chegou a casa. Na boa disposição dos 16 anos, achou imensa piada às prendas provocadoras, para embaraço de Adelaide. Antes de Duarte e Miguel, o seu filho de 12 anos chegarem, ela escondeu-as no armário.

Sozinha, mais uma vez, enquanto arrumava a cozinha, Adelaide apercebeu-se de como a sua vida estava estagnada. Vivia para o conforto da família, trabalhava por obrigação e sem prazer, e não fazia nada que realmente gostasse. Apercebeu-se também de que cada vez ria menos. No quarto, abriu o álbum de fotos, recordando as imagens da sua juventude, quase desconhecendo a pessoa que se tornara.

No dia seguinte, confidenciou a sua frustração a uma amiga de longa data. Manuela compreendeu-a, pois também ela tinha sentido o mesmo, uns meses atrás. Encontrara uma solução peculiar mas que a estava a ajudar: aulas de dança do ventre. A amiga só descansou quando a convenceu a tentar.

A primeira aula até que não correu muito mal. Adelaide não conseguia libertar-se dos grilhões que a aprisionavam há anos mas sentiu-se um pouco mais leve. Decidiu continuar com as aulas, mantendo o segredo do marido e dos filhos, o que não era difícil. Eles nunca a questionavam sobre o seu dia, ou sobre o que fosse da sua vida. Desde que as suas necessidades básicas fossem providas, desde que ela estivesse lá sempre que precisassem, não havia necessidade de perguntar nada.

À medida que as aulas progrediam, Adelaide libertou-se das suas amarras e executava os movimentos sensuais com uma naturalidade inesperada. A professora elogiava a sua evolução, e usava-a como exemplo para as outras alunas. Com o tempo, Adelaide perdeu até o embaraço que sentia em ser o centro das atenções.

Seis meses depois, a professora pediu-lhes que participassem numa exibição pública, com outras turmas. Num primeiro impacto, Adelaide recusou e alegou que era incapaz de subir a um palco, em frente a estranhos, semi-nua, a fazer os movimentos sensuais da dança do ventre. Não escapou ao poder de persuasão de Manuela, que a chamou de covarde e a fez enfrentar as verdadeiras razões por detrás da sua recusa. Tinha que contar à sua família o que andava a fazer e mostrar-lhes que era muito mais do que esposa e mãe.

O espanto na cara dos filhos e do marido chegou a ser cómico. Quando se deitaram, Duarte ainda não queria acreditar. Insistiram em ir assistir ao espectáculo o que deixou Adelaide mais insegura. Era tarde demais para voltar atrás, por isso aplicou-se na preparação do seu solo. Comprou um fato azul-turquesa, lindo e muito caro, com inúmeros acessórios. Praticou horas a fio, mesmo em casa, quando estava sozinha, memorizando todos os passos e movimentos.

Apesar do anfiteatro repleto, a sua família estava sentada logo na primeira fila. Adelaide foi a segunda a entrar no palco. Trazia o rosto coberto por um véu, que retirou vagarosamente. Esqueceu-se de tudo, excepto o prazer que sentia em dançar. Não era uma mulher de meia-idade mas sim uma jovem dançarina num qualquer harém, dançado para agradar. Quando terminou, a sala explodiu em aplausos e ela sentiu-se realizada, com um sorriso rasgado que não desapareceu a noite toda.

A caminho de casa, todos a elogiaram e ela ficou aliviada por Duarte não a ter achado ridícula ou os filhos se terem sentido envergonhados. Pelo contrário, eles repetiram vezes sem fim, que ela tinha sido a melhor dançarina.

Preparava-se para se deitar quando Duarte pediu-lhe que vestisse o fato azul-turquesa e dançasse para ele. O brilho que via nos olhos dele não a deixou recusar. Uma estranha excitação percorria-a enquanto dançava sensualmente, seduzindo o seu marido, como se fosse a primeira vez. Nessa noite amaram-se com um ardor reacendido. Antes de adormecer, com um sorriso nos lábios, Adelaide pensou que um dia desses, podia até usar os seus presentes ousados. Agora tinha a certeza de que Duarte ia gostar.

segunda-feira, julho 25, 2005

Puro romantismo...


Momento Perfeito

Agora que o segurava na palma da mão, já não lhe parecia tão bonito. A julgar pelo preço que tinha pago pelo anel, a beleza devia fazer parte da garantia. Horácio não conseguia afastar o nervosismo. Estava a planear aquele momento até ao mais ínfimo detalhe e temia estar a esquecer-se de alguma coisa. Entrou um cliente na livraria e ele deixou de lado a caixa com o anel.

Nunca mais se lembrou da dita caixa, até fechar a loja e ligar à Fernanda. Dali a duas horas iam estar no veleiro, rumo ao pôr-do-sol. Depois ele ia-lhe dar o anel e… nesse momento deu-se conta de que não sabia onde o tinha deixado. Enquanto se maldizia pela sua típica cabeça no ar, Horácio ligou para o amigo da joalharia e pediu-lhe que o atendesse urgentemente. Por sorte ele ainda não tinha saído e Horácio correu para a loja, resignado a comprar outro anel de noivado.

Por motivos óbvios, foi forçado a escolher outro mais modesto e menos caro. Convenceu-se de que também era bonito, singelo mas ainda assim fazia o efeito pretendido. Apressou-se a ir para casa, tomar banho e arranjar-se. Também ele tinha que estar perfeito, para que Fernanda não hesitasse quando ele a pedisse em casamento.

Nunca se esqueceria da primeira vez em que ela entrara na sua livraria. Um olhar curioso que devorava as estantes cheias de livros. Não conseguira ignorar uma mulher que partilhava a grande paixão da sua vida: a leitura. Assim que teve oportunidade, meteu conversa com ela e descobriu que Fernanda era professora de português. Na ânsia de vê-la mais vezes, ofereceu-lhe um desconto nos livros e ela passou a ser sua cliente habitual.

Cada vez que a via entrar, ficava logo bem disposto. Rodeava-a de gentilezas e conversavam sobre os livros e autores que Fernanda procurava. Queria deslumbrá-la com o seu conhecimento da área, mas sentia-se frustrado, pois ela não lhe enviava qualquer sinal de retribuir o seu interesse.

Um dia Fernanda olhou-o longamente e disse-lhe: “sou muito romântica. Espero um dia encontrar o homem que me faça sentir como a protagonista de uma comédia romântica americana”. Aquele comentário perseguiu-o durante dias, depois alugou uns quantos filmes do género e deduziu que ela lhe estava a dar uma indirecta.

Delineou a estratégia perfeita e no dia seguinte, quando Fernanda voltou à livraria ofereceu-lhe um pequeno livro de poesia. Recebeu um agradecimento distante, nada do que estava à espera. Talvez o problema estivesse no livro, por isso escolheu outro, desta vez com poemas clássicos de amor. Fernanda agradeceu a oferta, foi assim que lhe chamou, e saiu sem mais comentários.

Alguma coisa estava a falhar, pois Horácio julgava que estava a ser romântico ao dar-lhe as palavras mais belas para lhe confessar os sentimentos. Começava a suspeitar que Fernanda devia ter um coração de pedra. Quando abriu a loja, na manhã seguinte, tinha um pequeno embrulho no chão. Qual não foi o seu espanto ao ver uma primeira edição do Livro de Mágoas, de Florbela Espanca. Na pretensão de ser romântico esqueceu-se dos gostos de Fernanda e concentrou-se no preciosismo da dádiva. Dar por dar, era apenas um gesto. Escolher a prenda ideal, era mais difícil mas muito mais significativo. Lembrou-se de ter confessado a Fernanda que adorava os poemas de Espanca e sentiu-se emocionado com aquele presente. Devorou as páginas manchadas pelo tempo e depois, influenciado pela poetisa, pôs-se a escrever o que lhe ia na alma.

O seu pequeno manuscrito passou despercebido entre os livros que Fernanda tinha comprado. Nem ele nem ela se referiram aos poemas de Florbela Espanca, mas os olhares que trocaram estavam carregados de sinais e sentimentos. Já tinha a loja fechada quando alguém bateu na porta. Nem queria acreditar quando viu o rosto ansioso de Fernanda a espreitar na vitrina. Passados dois anos e Horácio ainda continuava a surpreendê-la com poemas enquanto ela oferecia-lhe livros antigos, obras preciosas que ele guardava a sete chaves.

O romantismo estava dentro deles e por isso, nessa tarde de Sábado, tudo tinha que estar maravilhoso. Fernanda estava linda, e nem desconfiava do que ele andava a planear. Adoravam velejar e por isso ela não estranhou o convite. Quando o sol começou a despedir-se, ficaram à deriva, e então Horácio, tomou coragem.

-“Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!”

As palavras de Florbela Espanca chamaram a atenção de Fernanda que, ao virar-se, deparou com Horácio de mão estendida e olhar doce. Enquanto lhe declamava um poema que escrevera para a ocasião, abriu a mão e revelou a caixinha com o anel. Ajoelhou-se e perguntou finalmente: “Queres casar comigo?” Sem conter as lágrimas, Fernanda saltou repentinamente e abraçou-se a ele. Desequilibraram-se e o veleiro oscilou bruscamente. Preocupado em segurar Fernanda, ele soltou a caixa do anel, que foi cair no mar.

O seu momento perfeito, tornou-se no momento desastrado, mas o mais importante é que Fernanda tinha ficado feliz. Quando regressavam a casa, ela lamentou-se pelo anel, tão lindo, agora no fundo do mar. Horácio consolou-a: “Não te preocupes, tenho outro, ainda mais bonito, algures na livraria. Só temos que o encontrar.”

segunda-feira, julho 11, 2005

A inspiração é uma coisa estranha...


Estranho cupido


O relógio da cozinha marcava as 9 horas em ponto. Lúcia correu para a porta, vestiu o casaco e saiu rapidamente. Não chegou a fechar a porta, teve que voltar atrás para buscar o telemóvel, que por pouco ficava em casa. Enquanto descia finalmente as escadas até ao hall do prédio, condenou-se, mais uma vez, por estar sempre atrasada. Não percebia como isso acontecia, uma vez que se levantava com bastante tempo, mas acabava por perder a noção das horas e atrasar-se infalivelmente.

O sol espreitava, quente, anunciando um lindo dia de primavera. Enquanto atravessava o pequeno jardim que circundava o prédio, pensou nas mil e uma coisas que tinha para fazer naquele dia. De repente, deparou-se com um homem, vestido com um fato de desporto, que passeava um pequeno cão, de raça labrador. Era a primeira vez que via, tanto o dono como o animal, por ali. Mesmo na sua pressa teve tempo de reparar na figura atraente do que devia ser o seu novo vizinho. Sentiu-se envergonhada com os seus pensamentos tão perversos, logo pela manhã. Passou por ele e cumprimentou-o cordialmente, sendo recompensada com um sorriso devastador.

Essa era, sem dúvida, uma boa forma de começar o dia, pensou para consigo. Estava a chegar ao carro, estacionado perto da estrada, quando ouviu uma voz masculina chamar por “Putchi”. Virou-se a tempo de ver o cãozinho que a seguia aos pulos, muito entusiasmado, ignorando o chamado do dono. Instintivamente, Lúcia abaixou-se e acolheu o animal nos braços, evitando que ele se dirigisse para a estrada movimentada com o tráfego da manhã.

O dono acudiu, alarmado. Com carinho retirou-lhe o animal dos braços e agradeceu atrapalhado, mas com um sorriso sincero. Lúcia desejou poder ficar um pouco mais e descobrir se ele era realmente seu vizinho. Uns dias depois teve a confirmação, pois ao sair de casa, deparou-se com ele, que descia as escadas. Mais uma vez, o cachorro correu para ela, impedido somente pela trela. Novamente, sorriram embaraçados mas cúmplices, divertidos com a fixação do animal por ela.
- Desculpe, ele não costuma ser assim, tão atrevido.
- Não faz mal, é até engraçado. Deve gostar do meu perfume!
Lúcia abaixou-se e fez festas ao cachorrinho que ficou alucinado e começou a lamber-lhe avidamente as mãos.
- Pronto, já chega. Deixa a senhora em paz, Putchi.
Enquanto se endireitava, Lúcia apercebeu-se que o seu decote tinha-se aberto e que uma grande parte dos seus seios estivera exposta ao olhar do vizinho. Sentiu o rubor invadir-lhe as faces e desejou desaparecer imediatamente. Desta vez, ele tinha um brilho maroto nos olhos e sorria abertamente, enquanto tentava segurar um eufórico Putchi.
- Adeus Putchi. – Lúcia gritou enquanto descia o lance de escadas e, lesta, escapulia do prédio.

Nos dias seguintes, esforçou-se por sair mais cedo, de forma a evitar o vizinho e o seu fã canino. No Sábado, dormiu até mais tarde, como de habitual. O sol já ia alto quando ela abriu a persiana do quarto. Sentiu-se contagiada com a manhã ensolarada e resolveu ir caminhar pelo parque.

Tal como imaginara, o parque estava muito concorrido, por miúdos e graúdos, que corriam animados, na relva extensa. Lúcia sentou-se num banco de jardim mais isolado e preparava-se para ler a revista que trazia quando foi atacada por uma coisa peluda.
- Putchi, volta aqui!
Não era imaginação, no seu colo, tentando incessantemente lamber-lhe a cara estava o seu amiguinho Putchi. Tentou acalmar o cãozinho, enquanto o dono corria do outro lado do parque, meio aflito, meio divertido.
- Parece que passo o tempo a pedir-lhe desculpas. A culpa é sua por ser irresistível.
Lúcia não sabia se lhe respondia ou se o melhor era permanecer em silêncio. Optou pela segunda.
- Já agora, o meu nome é Humberto. O dele já sabe, Putchi para os amigos.
O sorriso devastador desfez qualquer resistência que tivesse. Devolveu-lhe o sorriso e apresentou-se também. Humberto convidou-a para os acompanhar numa volta ao parque e ela acedeu, entusiasmada. Passou uma hora com eles e teve oportunidade de conhecê-los. Quando regressou a casa estava fascinada por aquele homem, quase um desconhecido, que lhe inspirava sentimentos loucos.

No fim do dia, sentiu um movimento perto da porta. Pé ante pé, abriu-a com receio do que pudesse ser. Sentado no tapete estava Putchi, com um laço vermelho ao pescoço e perto dele um bilhete. Lúcia leu a missiva e soltou uma forte gargalhada. Afinal não era só o cãozinho que estava atraído por ela. “O meu dono gostou muito da minha escolha. Gostávamos de convidar-te para um jantar, que pode ser amigável ou romântico. A escolha está nas tuas mãos.” Lúcia pegou em Putchi e subiu as escadas, rumo ao prometido jantar, romântico, claro.

segunda-feira, julho 04, 2005

Na primeira pessoa


A serpente do paraíso

Traição. Uma palavra feia que eu detesto ouvir. Infelizmente, nestes últimos tempos não lhe consegui escapar. Começou no trabalho, pequenas manobras nos bastidores, uns rumores, umas suspeitas. Escolhi uma área complicada para trabalhar, sempre em plena correria, no departamento de marketing de uma multinacional. Adoro aquilo que faço e, modéstia à parte, acho que o faço muito bem. Quando o meu chefe se aposentou, temi que o seu substituto não encarasse o meu desempenho da mesma forma. Qualquer receio que tivesse evaporou-se quando o conheci: Alexandre Ferreira, alto, moreno, uma barba rasa que lhe conferia um ar de desleixo intencional. Todas as mulheres do departamento, aliás, de toda a empresa, ficaram impressionadas com o meu novo chefe.

No início ficava incomodada quando tinha de falar com ele, queria agradar e ficava sempre com a impressão de que ele não me tinha em grande conta. Enfim, mania da perseguição, como diz a minha amiga Mónica. Cada nova tarefa que Alexandre me entregava, executava com afinco e dedicação. Passei a ser a última a sair e a primeira a chegar ao escritório. Mesmo assim, nas reuniões, ele ignorava a minha opinião e dedicava maior atenção às minhas outras colegas. Podia até ser mania da perseguição mas quando comecei a ser preterida em algumas situações, comecei a ficar muito desconcertada.

A Márcia, que trabalha comigo há muito tempo, avisou-me um dia que o Alexandre lhe tinha confidenciado achar-me muito fútil e lenta. Tão lenta que precisava de ficar até mais tarde e vir mais cedo para terminar os trabalhos simples que ele me dava. Essa foi a gota de água! Mudei radicalmente o meu comportamento, e refreei o meu entusiasmo inicial: nada de horas extras! Alexandre desceu na minha consideração, de tal forma que deixei de dar ideias ou sugestões. Limitei-me a fazer aquilo que ele me pedia, dentro do horário normal de trabalho.

Na altura, nem percebi o quanto tinha ficado magoada com o que a Márcia me tinha dito. Além disso, ela era uma funcionária medíocre, que se escondia em subterfúgios para dar a impressão de ser muito competente. E ele foi confiar logo nela! Mal sabia eu que a situação ainda ia piorar. Uma manhã, Márcia voltou à carga e disse-me que ele estava a namorar com a Liliana, uma loira oxigenada, com um cérebro minúsculo, que trabalhava nos recursos humanos.

Nesse dia cheguei a casa de rastos, fartei-me de chorar, sem perceber bem porquê. Foi a minha sábia conselheira Mónica que me apontou a razão: “Estás apaixonada por ele.” Não havia como negar. Estava apaixonada pelo meu chefe, um homem que gostava das mulheres loiras, burras e intriguistas. Ir trabalhar tornou-se um tormento e falar com Alexandre um castigo penoso. Bastava olhar para os olhos verdes que só me apetecia beijá-lo, abraçá-lo e nunca mais o largar. As nossas conversas passaram a ser muito rápidas, uma vez que eu só respondia com monossílabos. Cada vez que o apanhava a falar com a Liliana tinha que sair disparada para a casa de banho, perdida de ciúmes.

Passei a evitar a Márcia, só para não ouvir os comentários ferinos e novidades sobre o Alexandre que me magoavam. Aliás, trabalhar ali, na presença dele e sujeita aos rumores e dissabores constantes tornou-se insuportável. Resolvi pedir transferência para outra filial. O único problema é que Alexandre teria de assinar o pedido formal e a coragem faltava-me para o enfrentar.

Adiei a conversa até ao limite das minhas forças mas, uma tarde, quando toda a gente já tinha saído, entrei no gabinete dele e disse-lhe que me queria ir embora. Nunca me hei-de esquecer do olhar espantado dele, até gaguejou quando tentou falar! O pior foi dar-lhe uma razão plausível, pois ele não acreditou nas desculpas esfarrapadas que lhe dei. “Não devias ligar a tudo o que te dizem.” Alexandre fechou a pasta que tinha à sua frente e encostou-se na cadeira, olhando-me fixamente. Fiz-me de desentendida mas isso não o enganou. Pela primeira vez tivemos uma longa conversa, honesta e cheia de revelações. Afinal, ele até gostava do meu trabalho, sabia que podia confiar em mim, por isso nunca perdia muito tempo comigo. Apreciava a minha dedicação e o meu sentido de responsabilidade e ficara desiludido quando mudei o meu comportamento. Não lhe quis dizer que a Márcia me tinha envenenado de tal maneira que nunca duvidei daquilo que me disse. Alexandre convidou-me para jantar, para ter a certeza de que eu queria mesmo a transferência.

Mais tarde, talvez descontraída pelo vinho, acabei por admitir os boatos e até lhe perguntei pela Liliana. Senti-me uma idiota quando ele desatou a rir à gargalhada e por ter acreditado nas intrigas. Alexandre autorizou a transferência, mas não a minha. A Márcia não ficou nada contente, nem a Liliana, mas o ambiente no escritório tornou-se mais saudável.

Hoje vou trabalhar com empenho, ando sempre bem-disposta e não há cliente que não fique satisfeito. Alexandre já não é o meu chefe, mas em compensação é o meu marido. Cada vez que alguém me vem contar alguma coisa dúbia sobre ele, lembro-me da serpente no paraíso e cedo à tentação de acreditar. É fácil achar que uma felicidade tão grande não possa ser perfeita, e não é, mas existe e nunca será destruída por línguas viperinas de quem não suporta ver-me feliz.

segunda-feira, junho 27, 2005

III - Um conto em três partes


(continuação)

Cada novo toque era um tormento. Sabia que as fotografias iam ficar excelentes. Sabia que já tinha fotografado o suficiente. Sabia tudo isso mas não conseguia terminar a sessão. Cada toque era uma bênção e um tormento, mas não conseguia resistir. Por fim, nem ele conseguiu. Abraçou-a com firmeza e o beijo foi inevitável. A explosão dos sentidos arrancou Catarina da sua ténue resistência. Caiu sobre as pernas másculas e afundou-se nos braços musculosos. As suas mãos pareciam ter vida própria e percorriam a pele morena, incansavelmente.

Nessa noite entregou-se nos braços de Fernando, desfrutando de todo o prazer que aquele corpo tinha para lhe dar. Os braços tatuados envolviam-na num toque sensual. O roçar das suas peles quentes exaltava toda a sua paixão. Já não era a fotógrafa que ali estava, mas sim a mulher, sedutora e seduzida.

A exposição estava a ser um grande sucesso. As paredes brancas, anteriormente nuas e gélidas, permaneciam agora cobertas com exemplares gigantescos das suas fotografias. Catarina observava a curiosidade das pessoas, à medida que percorriam a sua obra. A cada exclamação de prazer, sorria serenamente. O centro das atenções era sempre a mesma fotografia. Do corpo masculino só se vislumbrava um pouco da parte inferior do pescoço e parava nas ancas. Mas não era no tronco musculado que os visitantes fixavam o olhar. Na parte inferior, perto do baixo-ventre via-se uma tatuagem mais recente. Na pele ainda ferida, podia ler-se apenas uma palavra: “Catarina”.


Ela tornou a sorrir, desta vez ao recordar o momento em que tirara aquela fotografia. Fernando seria sempre o seu modelo favorito, assim como Catarina era a única que tocava naquela pele onde ele declarava o seu amor, sem receios.

II - Um conto em três partes...


(continuação)


A música ambiente ajudava a criar uma atmosfera relaxada. As horas passaram rapidamente, sem que ambos reparassem. Catarina não conseguiu evitar um olhar apreciador ao homem que estava ali, bem à sua frente, nas poses mais sensuais de que se podia lembrar. Um calor agradável surgia em vários pontos-chave do seu corpo. Catarina sabia que estava a entrar em território perigoso. Quando lhe tocava para colocá-lo na posição que pretendia, um formigueiro agradável percorria-a. Sabia que algo a tinha atraído para ele, desde o primeiro olhar.

Quando deu por terminada a sessão, pediu-lhe para repetirem no sábado seguinte. Usou todos os argumentos de que se conseguiu lembrar, talvez demasiados, porque não queria que ele respondesse negativamente. As fotos podiam não ser suficientes e corria o risco de não ter captado os ângulos certos. Fernando apenas sorriu ao ouvi-la recitar tudo atabalhoadamente. Provavelmente percebeu que ela não queria deixá-lo ir, tão depressa.

A segunda sessão foi diferente. Havia uma maior intimidade entre eles. Catarina não tinha qualquer pudor ou receio em tocar-lhe e ao sentir as mãos delicadas no seu corpo, a pele morena arrepiava-se de prazer. Ela tinha espalhado pelo estúdio imensas velas, e Fernando estava deitado sobre umas gigantescas almofadas coloridas. Pairava no ar uma tensão sensual, que transparecia no movimento dos corpos, ele imóvel e ela a rodopiar à sua volta. Entusiasmada, Catarina pediu-lhe que se despisse completamente e Fernando, nada surpreendido, não hesitou...

domingo, junho 26, 2005

I - Um conto em três partes...

Estava uma linda manhã de Inverno. O Sol brilhava sem conseguir afastar o frio intenso. Aqueles dias eram os seus preferidos e Catarina gostava de vaguear pelos locais onde as pessoas se aglomeravam para desfrutar desses raios de Sol de Novembro. Observava atentamente as inúmeras pessoas que passeavam pelo parque. Com a máquina fotográfica na mão, procurava algo interessante para fotografar. A sua primeira exposição estava para breve e ainda não tinha material suficiente.

A uns metros de distância, quatro homens jogavam basquetebol. Os movimentos dos corpos musculados eram rápidos e elegantes. Catarina começou imediatamente a fotografar. Um deles parecia ser um pouco mais velho, mais de trinta anos, provavelmente. Era alto e bem constituído. No entanto, o que lhe chamou a atenção foram os seus braços cobertos de tatuagens. Com a sua potente objectiva, seguiu atenta, todos os gestos do desconhecido. Para um homem alto, movia-se com elegância, quase como um felino.

Catarina verificou que as tatuagens cobriam toda a extensão de ambos os braços e ficou curiosa. Interrogou-se quanto a outras possíveis tatuagens, em outras partes do corpo. Quando o jogo amigável terminou, dirigiu-se decidida, para o desconhecido.

- Bom dia. Desculpa a intromissão mas estava observar-vos e queria falar contigo.
O estranho olhou-a de cima a baixo, com um rasgo de curiosidade nos olhos verdes.
Em poucas palavras, Catarina explicou-lhe que era fotógrafa profissional. Depois de contar-lhe sobre a exposição, pediu-lhe que posasse para ela. Ficou um pouco ansiosa pela resposta, normalmente não teria a ousadia de fazer uma abordagem dessas mas estava a ficar desesperada.

No início, a única reacção de Fernando foi uma sonora gargalhada. Não estava interessado e tinha sido apanhado de surpresa. Mesmo assim, o olhar dele mostrava-lhe que tinha ficado curioso. Catarina tentou mais uma vez, reafirmando que não o estava a tentar engatar. Era uma profissional séria e essa era uma proposta de negócios para o qual ele seria correctamente remunerado. Ao ouvir falar em dinheiro, Fernando ergueu uma sobrancelha, como se aquela observação o tivesse ofendido. Surgiu uma tensão entre os dois que Catarina não compreendeu. No entanto, pensou que conseguia boas fotografias e isso é que interessava. Deixou o orgulho de lado e tentou desfazer a dúvida que via nos olhos verdes. Nunca soube o que foi que o convenceu, se a sua eloquência se o facto de ser uma mulher atraente. Catarina ficou satisfeita quando conseguiu persuadi-lo e combinaram encontrar-se no estúdio dela, nesse mesmo dia.

Catarina preparou o cenário, para que ficasse agradável e muito simples. A sua atenção estaria concentrada naquele corpo escultural e tudo o resto servia apenas para deixá-lo mais à vontade. Não ficou desiludida. Fernando tinha imensas tatuagens espalhadas por todo o corpo. Contou-lhe que fez a primeira aos 15 anos e que nunca mais parou. Algumas eram verdadeiras obras de arte e Catarina fotografava fascinada...

sábado, junho 25, 2005

Um final feliz... diferente

A vida num segundo

Até parecia que tinha sido ontem, a primeira vez que o vira. Os olhos azuis brilhavam sobre o sol intenso de primavera. Um louco pelo surf, Frederico estava sempre pronto para pegar uma onda e, quando as amigas dela a tinham arrastado para aquela praia, mal sabiam que estavam a selar o seu destino. Raquel tinha consciência de que aquelas memórias nunca se apagariam, mas perguntava-se porque tudo com eles tinha de ser tão rápido?

Naquele dia nem quis saber de mais nada, a não ser imaginar quando o iria ver novamente. Não tardou muito, foi nessa mesma noite, num bar perto da praia, onde Frederico e os amigos costumavam parar depois de um dia de aventura. Para sua alegria, ele lembrava-se dela, sorriu-lhe e foi-lhe buscar uma bebida. A partir desse momento não houve ninguém que os conseguisse separar, entre olhares e sorrisos nasceu uma forte atracção.

Claro que ele insistiu em ficar com o seu contacto, e Raquel contou os minutos até que ele lhe ligou, ainda nessa fatídica noite. Só queria dizer-lhe o quanto tinha gostado de a conhecer e implorou-lhe que o fosse encontrar na praia, na manhã seguinte. Raquel nem conseguiu dormir, tamanha a ansiedade de ver o sol aparecer e poder levantar-se da cama.

Aquela praia tornou-se um local de peregrinação deles, quase em todos os fins-de-semana, quando podiam escapar ao reboliço da cidade, fosse verão ou Inverno. Afinal, nessa manhã, Frederico recebeu-a com um tímido mas sincero beijo. Apesar das convidativas ondas, a prancha de surf não saiu da areia, e nesse dia nasceu o amor que ainda lhe preenchia o peito.

A pergunta continuava a latejar na sua mente: porque é que com eles era tudo tão rápido? Por um lado, tinha sido tão bom, envolver-se nesse turbilhão de emoções, quase sem conseguir respirar. O namoro voava ao ritmo da paixão que os envolvia e impulsionava a cometer loucuras. O velho carro dele presenciou muitas cenas indecorosas, intensas e lindas, nos locais mais estranhos. Um sorriso surgiu no rosto cansado de Raquel quando se lembrou de uma vez em que tinham resolvido dar largas à paixão, bem ao lado da Torre de Belém.

Dois meses mais tarde e Frederico pediu-lhe que fosse morar com ele. Raquel nem queria acreditar, pois não hesitou nem um segundo, e não se arrependeria nunca de o ter feito.

Viver todos os dias ao lado dele era uma constante descoberta. Claro que tinham as suas discussões, mas nada que um beijo ardente não resolvesse. Era impossível ser infeliz ao lado de um homem que a tratava como se tivesse de a conquistar de novo, todos os dias. Parecia um sonho, bom demais para ser verdade, mas perfeito em todos os sentidos. Acordava muitas vezes para descobrir uma flor, um bilhete com uma declaração de amor, um mimo que naquela noite ele planeara dar-lhe.

Raquel tinha perdido a conta às vezes em que ele a deixava dormir até mais tarde e lhe preparava um delicioso pequeno-almoço. Quando as amigas lhe perguntavam se tinha razões de queixa, Raquel não encontrava uma única e logo, assumiam que ela devia de estar a mentir. Ela descobriu, espantada, que a maioria dos casais não desfrutava dessa mesma harmonia.

O segredo, perguntavam-lhe muitas vezes, nem ela sabia. Talvez fosse porque ele era mesmo a sua alma gémea e tivesse acontecido o milagre de se terem encontrado. Estavam conscientes disso, cada vez que pisavam a areia daquela praia, sentiam a mesma magia que os unira ao primeiro olhar.

Agora, no presente, ao relembrar tantos momentos bonitos, Raquel esperava encontrar algum consolo e esperança. Perguntava-se se também ele recordara a vida num segundo, naquela fracção de segundos em que o camião embatera no carro dele e o lançara para a escuridão. Os três anos que tinham partilhado pareciam tão insignificantes perante aquilo que ainda poderiam viver. Raquel passou a mão pelo ventre proeminente, fruto da gravidez avançada e não conteve o choro.

Sentiu alguém tocar-lhe no ombro, mas nem queria olhar, não queria dar a oportunidade para que alguém lhe dissesse que nunca mais poderia ter ao seu lado a sua fonte de energia. Depois lembrou-se de que Frederico não gostaria que ela desistisse assim tão facilmente. Ela sabia que naquela sala de operações ele estaria a lutar pela vida, por eles, pelo filho que ainda não conhecia. Olhou finalmente e deparou-se com o olhar piedoso do médico.

“Correu tudo bem”, será que tinha ouvido bem? “Livre de perigo” voltou a repetir a voz apaziguadora. “Respira, Raquel, respira” comandou em silêncio, prestes a perder as forças caso a notícia fosse mais funesta. O alívio era tanto que só lhe apetecia gritar. Aquele susto viera acordá-la do sonho, da perfeição e relembrá-la que a vida era assim, rápida e traiçoeira. Prometeu a si mesma que nunca mais iria questionar a rapidez daquele amor, nem arrepender-se de estar ao lado de Frederico. Limpou as lágrimas e seguiu o médico, ansiosa por ver de novo o rosto do marido, com a certeza de que também ele estava ansioso por a ver.

sexta-feira, junho 24, 2005

Um dos primeiros contos


Encontrei-te no deserto


Ainda era cedo, perto das sete horas, mas o Sol já reinava em todo o seu esplendor, sobre as areias do Sahara. Sérgio contemplava, maravilhado, a gigantesca pirâmide de Gizé. Os seus devaneios levaram-no até ao tempo em que foi construída e ficou ali, imerso nos pensamentos. Felicitou-se por ter finalmente embarcado na viagem até ao Egipto. Era um apaixonado pela História e ali estavam, ao alcance das suas mãos, as testemunhas silenciosas de uma civilização poderosa.

Aos poucos o local estava a encher-se de turistas e ouvia-se o coro nada harmonioso das vozes inconfundíveis dos solícitos guias egípcios. Sérgio lembrou-se que tinha de se juntar novamente ao seu grupo pois estava na hora de partir para Luxur onde iam visitar o templo de Karnak. No caminho para o autocarro, cruzou-se com outro grupo de turistas. Lançou um olhar distraído e ficou cativado com uma figura feminina que viu um pouco mais distante. A jovem morena contemplava atentamente as pirâmides, tal como ele fizera antes. Daquele ângulo, ela parecia fazer parte de outro tempo, em que os faraós dominavam o Egipto. Não resistiu e, pegando na máquina fotográfica que tinha ao pescoço, tirou algumas fotos da desconhecida. Iluminada pela luz da manhã, a sua pele reflectia o deserto, o rosto redondo enfeitado por uns curiosos olhos negros. Com aquela imagem gravada na sua mente, Sérgio partiu relutante.

Já não gozava férias há algum tempo e queria aproveitar ao máximo as experiências do Egipto, desde o rebuliço do Cairo, aos coloridos mercados, sem esquecer a beleza do deserto e, corajosamente, até mesmo uma voltinha de dromedário. Luxur excedeu as suas expectativas, mas estava ansioso por embarcar no cruzeiro de quatro dias pelo Nilo até Assuão. O navio era bastante grande, com mais de trezentos quartos, todos bastante luxuosos. Esperava que essa fosse uma excelente oportunidade para descansar e recuperar energias. Além disso, na última noite seria organizada uma festa em que todos os passageiros teriam de ser vestir com roupas árabes.

Sérgio ainda permanecia no convés, horas após a partida, e pensava que comparado com o Cairo, que tinha um trânsito caótico, dia e noite, o calmo Nilo estava a ser um contraste agradável. Achou curioso o facto de o rio estar apinhado de inúmeros desses barcos de cruzeiro gigantescos, todos flutuando em silêncio, noite adentro. Ficou por ali mais algum tempo, a observar a margem repleta de uma vegetação luxuriante e as águas azuis do rio. Estava tão distraído com os seus pensamentos que só reparou na figura feminina a poucos metros, quando ela espirrou. A sua atenção recaiu nas delicadas mãos, pintadas com estranhas tatuagens, que lhe pareciam familiares. De repente lembrou-se onde tinha visto pinturas semelhantes e deduziu que a desconhecida devia ter estado na aldeia dos Nubios, famosa pelas pinturas no corpo com tinta de hena.

Quando o luar iluminou o perfil curvilíneo da rapariga, Sérgio apercebeu-se que esta era a mesma que tinha visto no deserto, junto às pirâmides. O seu coração disparou e ele sentiu-se subitamente tão nervoso como um tímido adolescente. Nem parecia o experiente jornalista que na realidade era. Procurou regular a sua pulsação e pensou numa forma de se apresentar. Tomou coragem e aproximou-se calmamente, aproveitando as pinturas das mãos para iniciar uma conversa. Cumprimentou-a em inglês, pois não conseguia perceber qual seria a sua nacionalidade. Afinal, naquele momento, o Nilo estava apinhado de turistas de todas as partes do mundo. A jovem olhou para ele com curiosidade e, por um momento, Sérgio pensou que ela não lhe ia responder. Por fim, ela falou, com uma voz meiga, num inglês perfeito, embora com um leve sotaque.

Falaram um pouco e Sérgio perguntou-lhe a nacionalidade, quando descobriu que ela também era portuguesa, nem quis acreditar na coincidência. Manuela, era esse o seu nome, provou ser uma pessoa cativante. Como professora de história, tinha os conhecimentos necessários para saciar a curiosidade de Sérgio e depois desse dia passaram a estar juntos, sempre que possível. Embalados pelo suave balançar do Nilo, trocaram impressões sobre o que tinham visto na viagem e pelo meio, algumas confidências. No segundo dia ele confessou-lhe que já a tinha visto no deserto, a admirar as pirâmides e que lhe tinha tirado fotografias. Manuela riu, descontraída e surpreendeu-o quando lhe contou que tinha reparado nisso.

Finalmente chegou o momento da tão aguardada festa árabe, foram comprar roupas adequadas para se produzirem. Mais tarde Sérgio esperava por Manuela no mesmo sítio do convés onde se tinham conhecido. Quando a viu, banhada pela lua, se ainda não estava apaixonado, ficou naquele instante, com o primeiro olhar. A figura esbelta, envolta em delicados véus, aproximou-se, as estrelas reflectidas nos olhos negros. Manuela passou a mão pelos cabelos encaracolados de Sérgio, colou o corpo ao dele e beijou-o suavemente.

‑ “Encontrei-te no deserto, conheci-te no Nilo e quero ficar contigo esta noite.” – Com um sorriso envergonhado, Manuela escondeu o rosto no abraço de Sérgio. Aquelas palavras ficaram toda a noite entre eles, como uma promessa. Ainda a festa ia a meio e eles dirigiram-se silenciosos até ao quarto de Sérgio. Manuela seduziu-o com uma improvisada dança do ventre, e depois entregaram-se ao prazer de desvendar os mistérios dos seus corpos. Quando a manhã os encontrou, já tinham trocado juras de amor e decidido que o que se encontra no deserto, nunca se perde.