Começar é sempre o mais difícil...
Uma folha em branco
Artur olhava irritado para a folha em branco. Precisava de desenhar a capa para um livro, com urgência. O prazo que a editora lhe tinha dado estava a terminar e a folha continuava vazia. Não adiantava ficar ali especado a olhar. Pegou no casaco e decidiu ir dar uma volta para arejar. Levou um bloco no bolso, não fosse a inspiração apanhá-lo desprevenido.
Caminhou à beira rio, observando os casais que namoravam, enroscados nos bancos de jardim. Aquilo não ajudava muito, o livro era do tipo policial, nada tinha de romântico. Na realidade, fazia uma ideia muito precisa do que queria mas a imagem não lhe surgia nítida. Pretendia desenhar apenas uma parte de um rosto feminino, formas misteriosas, sem serem demasiado explícitas. Estava farto de ver revistas de moda mas os rostos fotogénicos das manequins não o convenceram. Afinal, uma áurea de mistério não era assim tão fácil de aparecer.
A noite encontrou-o num bar movimentado, desta vez a olhar para um copo cheio de vodka. O ruído abafado das conversas entrecruzadas faziam-no sorrir discretamente, quando apanhava uma frase mais caricata. Estava prestes a desistir e regressar a casa quando reparou numa jovem que, sentada a um canto, escrevinhava num pequeno caderno. Alheia à confusão geral, a rapariga olhava, de vez em quando, para um casal mais afastado e continuava a escrever entusiasticamente. O seu ar compenetrado causou-lhe uma certa inveja. Como gostaria de estar no lugar dela, sentado naquela mesa, a desenhar a imagem perfeita.
Encaminhou-se para a saída, mas sem pensar, mudou o rumo e dirigiu-se à mesa da rapariga. Foi recebido com um olhar meio intrigado, meio irritado com a interrupção. Os olhos verdes dela questionavam-no abertamente sobre a ousadia de se intrometer num momento particular de inspiração. Pediu desculpa e, timidamente, perguntou-lhe o que estava a escrever.
A primeira abordagem não correu bem, por isso, resolveu ser honesto, e contou-lhe o seu dilema. Tinha dois dias para desenhar a capa perfeita para um livro e não conseguia arranjar inspiração. Desta vez conseguiu chamar a atenção dela, que solícita, ouviu o seu desabafo e até se mostrou compreensiva. Artur descreveu-lhe o enredo do livro, na esperança de encontrar uma nova abordagem.
Os olhos verdes brilhavam, com malícia, quando ela lhe deu algumas sugestões picantes. Entre risos e piadas, Lúcia fechou o caderno e resolveu ajudá-lo. O interesse dela parecia ser genuíno e muitas das sugestões que fez eram até plausíveis. Por algum motivo, Artur queria saber a sua opinião, e fez um esforço para impressioná-la. A meio da conversa, reparou que ela tinha um rosto bonito, delicado, onde os olhos verdes sobressaíam e dominavam. Contou-lhe a sua ideia, de desenhar os traços de um rosto feminino, as formas implícitas revelando o mistério que o livro encerrava.
Nesse momento, quando ela o elogiou pela ideia, levado por um impulso, Artur tomou coragem e pediu-lhe que o deixasse desenhá-la. Lúcia, apesar de lisonjeada, recusou. Nada que ele lhe pudesse dizer a demoveu. Depois, Artur ainda tentou pedir-lhe um contacto, mas ela deixou bem claro que não estava interessada em envolver-se com um artista, ainda mais, um artista sem inspiração.
O tom mordaz com que ela se despediu deu-lhe a energia necessária para criar. Chegou a casa e sentou-se resoluto em frente à folha de papel vazia. Não dormiu nessa noite, desenhando as várias nuances do rosto de Lúcia, da forma como as recordava. Temia que de manhã já não as visualizasse tão nitidamente.
O resultado final deixou-o satisfeito e aliviado. Por pouco não conseguia ultrapassar o drama da folha em branco, um medo que o perseguia desde que decidira enveredar pela carreira de artista. Aquele projecto de escritora, armada em intelectual, nunca saberia a ajuda que lhe tinha dado. Os traços dela eram quase imperceptíveis no desenho, mas foram um bom ponto de partida.
No dia seguinte, dirigiu-se à editora, ansioso por mostrar as suas propostas. Ficou ainda mais ansioso quando soube que o autor do livro estava lá também. Qual não foi o seu espanto quando entrou na sala e se deparou com Lúcia, confortavelmente instalada. Tentou disfarçar a ansiedade, mas tudo desmoronou assim que soube que ela era a autora do livro.
Colocou os desenhos em cima da mesa e afastou-se, certo de que ela ia detestar o que ele tinha feito. Para seu espanto, Lúcia teceu tantos elogios que ninguém se atreveu a criticar. Saiu da editora aliviado mas confuso. Lúcia saiu logo atrás e correu para o alcançar.
Queria pedir-lhe o número de telefone. Agora já podia. Afinal, o seu método para acabar com o medo da folha em branco tinha funcionado e ela merecia uma recompensa. A sua técnica do artista despeitado resultava sempre para ultrapassar qualquer bloqueio criativo...