segunda-feira, julho 11, 2005

A inspiração é uma coisa estranha...


Estranho cupido


O relógio da cozinha marcava as 9 horas em ponto. Lúcia correu para a porta, vestiu o casaco e saiu rapidamente. Não chegou a fechar a porta, teve que voltar atrás para buscar o telemóvel, que por pouco ficava em casa. Enquanto descia finalmente as escadas até ao hall do prédio, condenou-se, mais uma vez, por estar sempre atrasada. Não percebia como isso acontecia, uma vez que se levantava com bastante tempo, mas acabava por perder a noção das horas e atrasar-se infalivelmente.

O sol espreitava, quente, anunciando um lindo dia de primavera. Enquanto atravessava o pequeno jardim que circundava o prédio, pensou nas mil e uma coisas que tinha para fazer naquele dia. De repente, deparou-se com um homem, vestido com um fato de desporto, que passeava um pequeno cão, de raça labrador. Era a primeira vez que via, tanto o dono como o animal, por ali. Mesmo na sua pressa teve tempo de reparar na figura atraente do que devia ser o seu novo vizinho. Sentiu-se envergonhada com os seus pensamentos tão perversos, logo pela manhã. Passou por ele e cumprimentou-o cordialmente, sendo recompensada com um sorriso devastador.

Essa era, sem dúvida, uma boa forma de começar o dia, pensou para consigo. Estava a chegar ao carro, estacionado perto da estrada, quando ouviu uma voz masculina chamar por “Putchi”. Virou-se a tempo de ver o cãozinho que a seguia aos pulos, muito entusiasmado, ignorando o chamado do dono. Instintivamente, Lúcia abaixou-se e acolheu o animal nos braços, evitando que ele se dirigisse para a estrada movimentada com o tráfego da manhã.

O dono acudiu, alarmado. Com carinho retirou-lhe o animal dos braços e agradeceu atrapalhado, mas com um sorriso sincero. Lúcia desejou poder ficar um pouco mais e descobrir se ele era realmente seu vizinho. Uns dias depois teve a confirmação, pois ao sair de casa, deparou-se com ele, que descia as escadas. Mais uma vez, o cachorro correu para ela, impedido somente pela trela. Novamente, sorriram embaraçados mas cúmplices, divertidos com a fixação do animal por ela.
- Desculpe, ele não costuma ser assim, tão atrevido.
- Não faz mal, é até engraçado. Deve gostar do meu perfume!
Lúcia abaixou-se e fez festas ao cachorrinho que ficou alucinado e começou a lamber-lhe avidamente as mãos.
- Pronto, já chega. Deixa a senhora em paz, Putchi.
Enquanto se endireitava, Lúcia apercebeu-se que o seu decote tinha-se aberto e que uma grande parte dos seus seios estivera exposta ao olhar do vizinho. Sentiu o rubor invadir-lhe as faces e desejou desaparecer imediatamente. Desta vez, ele tinha um brilho maroto nos olhos e sorria abertamente, enquanto tentava segurar um eufórico Putchi.
- Adeus Putchi. – Lúcia gritou enquanto descia o lance de escadas e, lesta, escapulia do prédio.

Nos dias seguintes, esforçou-se por sair mais cedo, de forma a evitar o vizinho e o seu fã canino. No Sábado, dormiu até mais tarde, como de habitual. O sol já ia alto quando ela abriu a persiana do quarto. Sentiu-se contagiada com a manhã ensolarada e resolveu ir caminhar pelo parque.

Tal como imaginara, o parque estava muito concorrido, por miúdos e graúdos, que corriam animados, na relva extensa. Lúcia sentou-se num banco de jardim mais isolado e preparava-se para ler a revista que trazia quando foi atacada por uma coisa peluda.
- Putchi, volta aqui!
Não era imaginação, no seu colo, tentando incessantemente lamber-lhe a cara estava o seu amiguinho Putchi. Tentou acalmar o cãozinho, enquanto o dono corria do outro lado do parque, meio aflito, meio divertido.
- Parece que passo o tempo a pedir-lhe desculpas. A culpa é sua por ser irresistível.
Lúcia não sabia se lhe respondia ou se o melhor era permanecer em silêncio. Optou pela segunda.
- Já agora, o meu nome é Humberto. O dele já sabe, Putchi para os amigos.
O sorriso devastador desfez qualquer resistência que tivesse. Devolveu-lhe o sorriso e apresentou-se também. Humberto convidou-a para os acompanhar numa volta ao parque e ela acedeu, entusiasmada. Passou uma hora com eles e teve oportunidade de conhecê-los. Quando regressou a casa estava fascinada por aquele homem, quase um desconhecido, que lhe inspirava sentimentos loucos.

No fim do dia, sentiu um movimento perto da porta. Pé ante pé, abriu-a com receio do que pudesse ser. Sentado no tapete estava Putchi, com um laço vermelho ao pescoço e perto dele um bilhete. Lúcia leu a missiva e soltou uma forte gargalhada. Afinal não era só o cãozinho que estava atraído por ela. “O meu dono gostou muito da minha escolha. Gostávamos de convidar-te para um jantar, que pode ser amigável ou romântico. A escolha está nas tuas mãos.” Lúcia pegou em Putchi e subiu as escadas, rumo ao prometido jantar, romântico, claro.