domingo, julho 15, 2007

Colisão de Amor

O trânsito estava caótico e Marília começava a perder a paciência. Quando se viu livre da confusão, passou para a faixa da esquerda e acelerou atrás de um carro preto. Distraída, com a mão direita tentou abrir o feEle insistiu em levá-la até casacho da mala, que estava no banco ao lado, à procura de umas pastilhas. Praguejou baixinho, quando a tarefa mostrou ser mais complicada do que parecia, mas não desistiu. Quando conseguiu finalmente abrir a mala, mergulhou a mão no meio das inúmeras coisas que tinha lá dentro. Manteve o olhar preso na traseira do carro preto, enquanto tacteava, sem êxito, a grande confusão que reinava na mala. Irritada, desviou o olhar por um segundo para ver se descobria as malditas pastilhas e, quando deu por isso, estava quase em cima do carro preto, que entretanto tinha travado a fundo. Pisou o travão com força e sentiu o carro a guinar, fora de controlo, apercebendo-se que não ia conseguir parar a tempo.

Viu o olhar estarrecido do condutor do carro preto que,

através do espelho retrovisor, notou a sua aproximação sem nada poder fazer para a evitar. Quando os dois veículos colidiram, Marília foi projectada e bateu com a testa no volante. Não sentia dor e foi com espanto que tocou no líquido quente que lhe escorria pela face. A visão do sangue alertou-a para a gravidade da situação. À sua volta, o cenário era caótico. O carro atrás de si conseguiu parar a tempo e estava a fazer quatro piscas, evitando assim um choque em cadeia. O condutor do carro preto estava já no exterior, e olhava-a com um ar meio irritado, meio preocupado.

Continuava a sentir-se tonta e a sua visão estava a tornar-se cada vez mais desfocada. Tentou respirar fundo. Estava a entrar em pânico. Que dor intensa na cabeça e o sangue que não estancava! A porta do carro abriu-se e uma voz preocupada questionou-a:
- Acha que consegue andar? Partiu alguma coisa? Consegue falar?

A enxurrada de perguntas não estava a ajudar e Marília tentou falar, sem sucesso. A sua voz parecia estar escondida, perdida no meio da confusão. Um braço forte puxou-a para fora do carro, com firmeza mas também com cuidado. Marília fechou os olhos, pois a luminosidade matinal feriu-a e o sangue que lhe escorria da testa também não ajudava. Alguém teve a preocupação de tentar estancar o sangue e ela gemeu debilmente pois o contacto, embora delicado, provocou-lhe uma dor intensa. Por mais que tentasse estava a perder o controlo do seu corpo, como tinha perdido o do carro e uma fria escuridão arrastou-a para a inconsciência.

Já não sentia dor mas sentiu-se perdida quando abriu os olhos e percebeu que estava no hospital. A lembrança do infeliz acidente veio-lhe à memória e Marília sentiu-se tremendamente idiota. Tanta chatice por causa de uma mísera pastilha! O médico foi muito atencioso e alertou-a quanto à necessidade de repousar nos próximos dias, mesmo não lhe diagnosticando nada de grave. Descobriu, para sua surpresa, que o condutor do carro preto estava à sua espera. Ia ser embaraçoso ter de enfrentar a vítima da sua distracção!

O homem mostrou-se muito solícito, insistindo em levá-la até casa. De certa maneira, a oferta veio mesmo a calhar. Marília morava sozinha e a família estava muito longe, na Madeira, a sua terra natal. Tinha alguns amigos mas preferia não incomodá-los. No trajecto para casa, Marília observou discretamente Leonel, a sua vítima incauta. Ela estava a tentar afastar a memória do acidente, sem conseguir controlar o pânico. Leonel quebrou o silêncio para informá-la de que ambos os carros estavam na oficina. Sugeriu ainda que resolvessem a questão amigavelmente. Marília reconhecia plenamente a sua culpa e estupidez, não havia razão para opor-se. Preencheram a declaração amigável e o Leonel saiu da sua vida.

Alguns dias depois, Marília teve que retomar a sua rotina e voltou a conduzir. Embora estivesse receosa, tomou muito cuidado e desta vez chegou sã e salva ao seu destino. O acidente pertencia ao passado, apesar da cicatriz na testa que teimava em recordá-la, e da lembrança dos olhos verdes de Leonel no espelho retrovisor. Não estava assim tão mal que deixasse de reparar na sua imponência e elegância, e a memória do toque carinhoso quando a retirou do carro. Não conseguia evitar uma certa melancolia. Se ao menos tivesse uma desculpa para entrar em contacto com ele… quem lhe mandou assinar a declaração amigável tão prontamente!

O destino parecia estar do lado de Marília, duas semanas depois recebeu um telefonema de Leonel, que a informou de que ela tinha preenchido mal os papéis. Encontraram-se num Sábado à tarde e acabaram por ficar imenso tempo a conversar. Marília gostaria de ser um pouco mais atrevida, porque mais uma vez o viu despedir-se sem perspectivas de um novo encontro.

Marília agradeceu a todos os santos quando o Leonel lhe voltou a telefonar: desta vez foi ele quem se enganou a preencher os papéis. Encontro marcado para sexta-feira à noite proporcionou um jantar a dois. Cada nova característica que Marília lhe descobria deixava-a fascinada por aquele homem. Sensível, com bom senso, divertido e com uma tendência para fazê-la sentir segura. Mais uma vez, despediram-se sem que o Leonel demonstrasse interesse em marcar um novo encontro. Marília compreendia, afinal ele não a devia ter em grande consideração, depois de ela lhe ter espatifado o carro, ainda por cima, por causa de uma pastilha.

O cartão com o contacto de Leonel estava mesmo ao lado do telefone e ela sentia uma forte tentação em ligar-lhe sem arranjar coragem para o fazer. Felizmente ele tomou a iniciativa. Ao ouvir a sensual voz masculina, Marília quis saber qual dos papéis estava mal, dessa vez. O Leonel largou uma gargalhada e respondeu-lhe que estava tudo bem encaminhado. Marília ia desmaiando quando ele lhe disse que agora podia passar para coisas mais importantes e convidou-a para jantar. Quando ela quis saber a razão, ele riu-se novamente e disse que queria agradecer-lhe pela distracção oportuna, que fizera com as suas vidas se cruzassem.