sábado, junho 25, 2005

Um final feliz... diferente

A vida num segundo

Até parecia que tinha sido ontem, a primeira vez que o vira. Os olhos azuis brilhavam sobre o sol intenso de primavera. Um louco pelo surf, Frederico estava sempre pronto para pegar uma onda e, quando as amigas dela a tinham arrastado para aquela praia, mal sabiam que estavam a selar o seu destino. Raquel tinha consciência de que aquelas memórias nunca se apagariam, mas perguntava-se porque tudo com eles tinha de ser tão rápido?

Naquele dia nem quis saber de mais nada, a não ser imaginar quando o iria ver novamente. Não tardou muito, foi nessa mesma noite, num bar perto da praia, onde Frederico e os amigos costumavam parar depois de um dia de aventura. Para sua alegria, ele lembrava-se dela, sorriu-lhe e foi-lhe buscar uma bebida. A partir desse momento não houve ninguém que os conseguisse separar, entre olhares e sorrisos nasceu uma forte atracção.

Claro que ele insistiu em ficar com o seu contacto, e Raquel contou os minutos até que ele lhe ligou, ainda nessa fatídica noite. Só queria dizer-lhe o quanto tinha gostado de a conhecer e implorou-lhe que o fosse encontrar na praia, na manhã seguinte. Raquel nem conseguiu dormir, tamanha a ansiedade de ver o sol aparecer e poder levantar-se da cama.

Aquela praia tornou-se um local de peregrinação deles, quase em todos os fins-de-semana, quando podiam escapar ao reboliço da cidade, fosse verão ou Inverno. Afinal, nessa manhã, Frederico recebeu-a com um tímido mas sincero beijo. Apesar das convidativas ondas, a prancha de surf não saiu da areia, e nesse dia nasceu o amor que ainda lhe preenchia o peito.

A pergunta continuava a latejar na sua mente: porque é que com eles era tudo tão rápido? Por um lado, tinha sido tão bom, envolver-se nesse turbilhão de emoções, quase sem conseguir respirar. O namoro voava ao ritmo da paixão que os envolvia e impulsionava a cometer loucuras. O velho carro dele presenciou muitas cenas indecorosas, intensas e lindas, nos locais mais estranhos. Um sorriso surgiu no rosto cansado de Raquel quando se lembrou de uma vez em que tinham resolvido dar largas à paixão, bem ao lado da Torre de Belém.

Dois meses mais tarde e Frederico pediu-lhe que fosse morar com ele. Raquel nem queria acreditar, pois não hesitou nem um segundo, e não se arrependeria nunca de o ter feito.

Viver todos os dias ao lado dele era uma constante descoberta. Claro que tinham as suas discussões, mas nada que um beijo ardente não resolvesse. Era impossível ser infeliz ao lado de um homem que a tratava como se tivesse de a conquistar de novo, todos os dias. Parecia um sonho, bom demais para ser verdade, mas perfeito em todos os sentidos. Acordava muitas vezes para descobrir uma flor, um bilhete com uma declaração de amor, um mimo que naquela noite ele planeara dar-lhe.

Raquel tinha perdido a conta às vezes em que ele a deixava dormir até mais tarde e lhe preparava um delicioso pequeno-almoço. Quando as amigas lhe perguntavam se tinha razões de queixa, Raquel não encontrava uma única e logo, assumiam que ela devia de estar a mentir. Ela descobriu, espantada, que a maioria dos casais não desfrutava dessa mesma harmonia.

O segredo, perguntavam-lhe muitas vezes, nem ela sabia. Talvez fosse porque ele era mesmo a sua alma gémea e tivesse acontecido o milagre de se terem encontrado. Estavam conscientes disso, cada vez que pisavam a areia daquela praia, sentiam a mesma magia que os unira ao primeiro olhar.

Agora, no presente, ao relembrar tantos momentos bonitos, Raquel esperava encontrar algum consolo e esperança. Perguntava-se se também ele recordara a vida num segundo, naquela fracção de segundos em que o camião embatera no carro dele e o lançara para a escuridão. Os três anos que tinham partilhado pareciam tão insignificantes perante aquilo que ainda poderiam viver. Raquel passou a mão pelo ventre proeminente, fruto da gravidez avançada e não conteve o choro.

Sentiu alguém tocar-lhe no ombro, mas nem queria olhar, não queria dar a oportunidade para que alguém lhe dissesse que nunca mais poderia ter ao seu lado a sua fonte de energia. Depois lembrou-se de que Frederico não gostaria que ela desistisse assim tão facilmente. Ela sabia que naquela sala de operações ele estaria a lutar pela vida, por eles, pelo filho que ainda não conhecia. Olhou finalmente e deparou-se com o olhar piedoso do médico.

“Correu tudo bem”, será que tinha ouvido bem? “Livre de perigo” voltou a repetir a voz apaziguadora. “Respira, Raquel, respira” comandou em silêncio, prestes a perder as forças caso a notícia fosse mais funesta. O alívio era tanto que só lhe apetecia gritar. Aquele susto viera acordá-la do sonho, da perfeição e relembrá-la que a vida era assim, rápida e traiçoeira. Prometeu a si mesma que nunca mais iria questionar a rapidez daquele amor, nem arrepender-se de estar ao lado de Frederico. Limpou as lágrimas e seguiu o médico, ansiosa por ver de novo o rosto do marido, com a certeza de que também ele estava ansioso por a ver.

sexta-feira, junho 24, 2005

Um dos primeiros contos


Encontrei-te no deserto


Ainda era cedo, perto das sete horas, mas o Sol já reinava em todo o seu esplendor, sobre as areias do Sahara. Sérgio contemplava, maravilhado, a gigantesca pirâmide de Gizé. Os seus devaneios levaram-no até ao tempo em que foi construída e ficou ali, imerso nos pensamentos. Felicitou-se por ter finalmente embarcado na viagem até ao Egipto. Era um apaixonado pela História e ali estavam, ao alcance das suas mãos, as testemunhas silenciosas de uma civilização poderosa.

Aos poucos o local estava a encher-se de turistas e ouvia-se o coro nada harmonioso das vozes inconfundíveis dos solícitos guias egípcios. Sérgio lembrou-se que tinha de se juntar novamente ao seu grupo pois estava na hora de partir para Luxur onde iam visitar o templo de Karnak. No caminho para o autocarro, cruzou-se com outro grupo de turistas. Lançou um olhar distraído e ficou cativado com uma figura feminina que viu um pouco mais distante. A jovem morena contemplava atentamente as pirâmides, tal como ele fizera antes. Daquele ângulo, ela parecia fazer parte de outro tempo, em que os faraós dominavam o Egipto. Não resistiu e, pegando na máquina fotográfica que tinha ao pescoço, tirou algumas fotos da desconhecida. Iluminada pela luz da manhã, a sua pele reflectia o deserto, o rosto redondo enfeitado por uns curiosos olhos negros. Com aquela imagem gravada na sua mente, Sérgio partiu relutante.

Já não gozava férias há algum tempo e queria aproveitar ao máximo as experiências do Egipto, desde o rebuliço do Cairo, aos coloridos mercados, sem esquecer a beleza do deserto e, corajosamente, até mesmo uma voltinha de dromedário. Luxur excedeu as suas expectativas, mas estava ansioso por embarcar no cruzeiro de quatro dias pelo Nilo até Assuão. O navio era bastante grande, com mais de trezentos quartos, todos bastante luxuosos. Esperava que essa fosse uma excelente oportunidade para descansar e recuperar energias. Além disso, na última noite seria organizada uma festa em que todos os passageiros teriam de ser vestir com roupas árabes.

Sérgio ainda permanecia no convés, horas após a partida, e pensava que comparado com o Cairo, que tinha um trânsito caótico, dia e noite, o calmo Nilo estava a ser um contraste agradável. Achou curioso o facto de o rio estar apinhado de inúmeros desses barcos de cruzeiro gigantescos, todos flutuando em silêncio, noite adentro. Ficou por ali mais algum tempo, a observar a margem repleta de uma vegetação luxuriante e as águas azuis do rio. Estava tão distraído com os seus pensamentos que só reparou na figura feminina a poucos metros, quando ela espirrou. A sua atenção recaiu nas delicadas mãos, pintadas com estranhas tatuagens, que lhe pareciam familiares. De repente lembrou-se onde tinha visto pinturas semelhantes e deduziu que a desconhecida devia ter estado na aldeia dos Nubios, famosa pelas pinturas no corpo com tinta de hena.

Quando o luar iluminou o perfil curvilíneo da rapariga, Sérgio apercebeu-se que esta era a mesma que tinha visto no deserto, junto às pirâmides. O seu coração disparou e ele sentiu-se subitamente tão nervoso como um tímido adolescente. Nem parecia o experiente jornalista que na realidade era. Procurou regular a sua pulsação e pensou numa forma de se apresentar. Tomou coragem e aproximou-se calmamente, aproveitando as pinturas das mãos para iniciar uma conversa. Cumprimentou-a em inglês, pois não conseguia perceber qual seria a sua nacionalidade. Afinal, naquele momento, o Nilo estava apinhado de turistas de todas as partes do mundo. A jovem olhou para ele com curiosidade e, por um momento, Sérgio pensou que ela não lhe ia responder. Por fim, ela falou, com uma voz meiga, num inglês perfeito, embora com um leve sotaque.

Falaram um pouco e Sérgio perguntou-lhe a nacionalidade, quando descobriu que ela também era portuguesa, nem quis acreditar na coincidência. Manuela, era esse o seu nome, provou ser uma pessoa cativante. Como professora de história, tinha os conhecimentos necessários para saciar a curiosidade de Sérgio e depois desse dia passaram a estar juntos, sempre que possível. Embalados pelo suave balançar do Nilo, trocaram impressões sobre o que tinham visto na viagem e pelo meio, algumas confidências. No segundo dia ele confessou-lhe que já a tinha visto no deserto, a admirar as pirâmides e que lhe tinha tirado fotografias. Manuela riu, descontraída e surpreendeu-o quando lhe contou que tinha reparado nisso.

Finalmente chegou o momento da tão aguardada festa árabe, foram comprar roupas adequadas para se produzirem. Mais tarde Sérgio esperava por Manuela no mesmo sítio do convés onde se tinham conhecido. Quando a viu, banhada pela lua, se ainda não estava apaixonado, ficou naquele instante, com o primeiro olhar. A figura esbelta, envolta em delicados véus, aproximou-se, as estrelas reflectidas nos olhos negros. Manuela passou a mão pelos cabelos encaracolados de Sérgio, colou o corpo ao dele e beijou-o suavemente.

‑ “Encontrei-te no deserto, conheci-te no Nilo e quero ficar contigo esta noite.” – Com um sorriso envergonhado, Manuela escondeu o rosto no abraço de Sérgio. Aquelas palavras ficaram toda a noite entre eles, como uma promessa. Ainda a festa ia a meio e eles dirigiram-se silenciosos até ao quarto de Sérgio. Manuela seduziu-o com uma improvisada dança do ventre, e depois entregaram-se ao prazer de desvendar os mistérios dos seus corpos. Quando a manhã os encontrou, já tinham trocado juras de amor e decidido que o que se encontra no deserto, nunca se perde.