terça-feira, julho 25, 2006

O amor e o Acaso


Um bilhete mágico

O bilhete na mão estava a ficar amachucado, tal a força com que Adriana o segurava. Detestava estar no meio de muita gente, principalmente sozinha mas agora era tarde demais para recuar. Quando tinha comprado o bilhete para a ópera, Constância garantira-lhe que ia também.

Gostava deste tipo de espectáculos e o marido recusava-se a assistir a algo tão pedante, como ele lhe chamava. “Sorte a minha” dizia Adriana cada vez que era intimada pela amiga a ir com ela a um desses programas alternativos. O marido dela ficava com os gémeos e as duas iam curtir uma noite mais intelectual. Excepto nesse dia. Adriana, por muito que lhe custasse, sabia que a amiga não tinha alternativa, com o marido e os filhos doentes. Mesmo assim, desprezava a ideia de sentar-se sozinha na imensidão do teatro, com uma cadeira vazia ao lado, durante três horas de espectáculo.

Infelizmente não conhecia mais ninguém que apreciasse ópera, por isso o bilhete de Constância ia-se perder. Encontrou o lugar correspondente e sentou-se, conformada com a situação. A cadeira ao seu lado tornou-se rapidamente a única vazia. Do outro lado, uma loira com ar sofisticado deitou-lhe um olhar piedoso que a deixou ainda mais irritada. Finalmente começou o espectáculo e Adriana abstraiu-se de tudo.

A sua atenção foi, no entanto, desviada para um homem alto que vinha na sua direcção. Tentando passar despercebido, o estranho fez levantar meia fila para chegar à cadeira vaga. Sentou-se com um suspiro de alívio e enviou um sorriso de perdão à loira pedante. Adriana voltou a concentrar o olhar no palco quando o ouviu sussurrar: “Por acaso é a Adriana?”. Virou-se para ele mas, para sua surpresa, o desconhecido estava a dirigir-se à sua vizinha loira. A mulher respondeu-lhe uma negativa seca que o fez pedir-lhe desculpas embaraçado.

Curiosa, Adriana observou-o disfarçadamente, mas não o reconheceu. Quem seria e o que queria dela? Agora é que não conseguia dar atenção à ópera. Dissimulou a curiosidade, concentrando o olhar no palco. Com o canto do olho, viu o desconhecido tentar ler o bilhete, na penumbra do teatro. Desistiu e voltou a suspirar. O primeiro acto terminou e as luzes iluminaram a plateia.

O homem retirou o bilhete do bolso e leu-o finalmente, virando-se em seguida para ela. “Suponho que seja a Adriana.” Afirmou com um sorriso. “Sim, sou eu. E quem é o senhor?” O mistério ia finalmente esclarecer-se. “Sou o Jacinto, o cunhado da Constância. Ela ofereceu-me o bilhete e pediu-me para lhe fazer companhia.” Adriana ficou estática, a sua memória a tentar rebuscar tudo o que sabia sobre ele.

A amiga gostava muito de falar sobre o cunhado, que morava na Austrália, onde tinha uma grande fazenda. Alguma coisa nas palavras dela levara-a a imaginá-lo como um parolo musculado, desajeitado e bronco. O homem que tinha à sua frente era esguio, bem vestido e com um rosto atraente.

Quando a ópera acabou, Adriana agradeceu mentalmente à amiga, por ter tido o bom senso de oferecer ao cunhado o bilhete, proporcionando-lhe uma companhia muito agradável. Estava consciente dos olhares ávidos das outras mulheres, nos intervalos da ópera, quando ele a escoltava, galante, até ao bar. Há muito tempo que não se sentia tão atraída por alguém, em questão de minutos.

No dia seguinte, se alguém lhe perguntasse, nem se recordava dos pormenores do espectáculo. Estivera demasiado ocupada em observar cada movimento de Jacinto, a sentir-lhe o cheiro e a ouvir os relatos entusiasmados sobre a sua vida na Austrália.

Constância não demorou a telefonar-lhe, curiosa, embora tentasse disfarçar. Adriana passou-lhe um raspanete sem convicção e depois confessou-se apaixonada. Dois dias foram o suficiente para que ele lhe ligasse, a convidá-la para ir a um concerto de violoncelo, convite que ela aceitou prontamente.

Vê-lo novamente deixou-a ainda mais impressionada, mas também insegura quanto aos sentimentos dele. Qualquer insegurança que tivesse, desvaneceu-se quando ele a abraçou e beijou, antes de a deixar em casa. Os dois meses seguintes foram para Adriana um sonho, Jacinto esforçou-se por agradá-la e a cada dia surgia com uma nova surpresa.

Infelizmente, o dia em que ele teria de regressar à Austrália aproximava-se a passos largos e Adriana temia que isso fosse o fim daquela sua história de amor. Jacinto partiu com a promessa de usar todos os meios que existiam para se comunicar com ela, todos os dias, até que ele pudesse voltar a Portugal. “Posso estar no outro lado do mundo, mas vou estar presente na tua vida.” Foram as suas últimas palavras antes de partir.

Homem de palavra, todos os dias Adriana tinha notícias dele, o que fazia aumentar a saudade. Quando pensava que não ia aguentar mais, recebeu no correio um bilhete mágico, desta vez para um lugar cativo na Austrália. A sua ópera privada esperava por ela, a plateia deserta reservada só para ela e para o seu amor.