segunda-feira, setembro 24, 2007

Despertar para o Amor

Um lento amanhecer iluminava as ruas ainda desertas. Joana estacionou o carro e caminhou rapidamente para o seu apartamento. As últimas energias que a muito custo mantinha permitiram-lhe apenas beber um iogurte e engolir uma bolacha. Só queria esticar-se na cama e apagar do corpo as 20 horas de trabalho. O sono não tardou a envolvê-la e Joana entregou-se ao alívio do descanso.

Pouco tempo volvido e, apesar de querer continuar a dormir, algo insistia em incomodá-la. Por entre a névoa do sono apercebeu-se de um som cada vez mais presente. Parecia um saxofone mas bastante desafinado. Tentou convencer-se de que devia estar a sonhar mas já era tarde demais, a realidade atingiu-a como uma pancada. Levantou-se num gesto brusco, extremamente irritada.


O som vinha do apartamento do lado, o que era uma surpresa, uma vez que os vizinhos tinham vendido a casa há mais de um mês e ela não sabia que os novos moradores já estavam instalados. Pelos vistos tinham chegado e não eram nada sossegados.

Já passava das 10 horas, na prática Joana não podia fazer nada pois a maioria das pessoas estava a trabalhar naquele horário. Para mal dos seus pecados, além de ter ficado de plantão durante dois turnos no hospital, agora não podia descansar. Joana ligou a televisão e correu os canais sem que encontrasse alguma coisa que lhe prendesse a atenção. Era demasiado cedo até para que a programação televisiva tivesse o mínimo de interesse. Resolveu tomar um bom banho e sair de casa, antes que o novo vizinho ficasse a conhecer o seu mau feitio em primeira-mão.

O sol brilhava intensamente, apesar de ser Outono, e um calor agradável proporcionou a Joana um passeio descontraído no parque. Quando regressou ao prédio encontrou a porteira que logo a colocou a par das novidades. Afinal era só um o vizinho, um jovem músico, com muito bom aspecto, segundo a idosa. Não prestou muita atenção aos detalhes pois reparou que o barulho tinha terminado e só pensava em voltar para a sua cama acolhedora.

Durante o mês seguinte, cada vez que trabalhava no turno da noite Joana não conseguia descansar de manhã. O vizinho continuava no exercício de desafinação e ela via-se obrigada a sair de casa para não tomar nenhuma atitude drástica.


Joana não era uma pessoa paciente e chegou o dia em que saltou da cama, vestida apenas com o seu pijama dos ursinhos e foi bater à porta do vizinho. Vinha esgotada do trabalho, a ala pediátrica tinha sempre muito movimento e a falta de pessoal não ajudava. Só queria uma coisa: dormir, e aquele barulho tinha de acabar e era já!

A porta abriu-se e um grande vulto masculino encheu a entrada. Joana teve que olhar para cima para conseguir ver o rosto do vizinho misterioso. Uns intensos olhos azuis observavam-na intrigados. Joana sentiu-se envergonhada pela figura em que se encontrava. Balbuciou qualquer coisa e tentou dar ênfase à sua versão dos acontecimentos. O vizinho foi bastante compreensivo e prometeu passar a ensaiar de tarde.


Com o alívio de ter posto um ponto final naquela situação desagradável, o sono foi curto mas poderoso. Sentindo-se revigorada, Joana decidiu dar um passeio. Nada poderia abalar a sua boa disposição! Abriu a porta e tropeçou. Estatelada no chão, reparou que tinha um vaso de flores derrubado em cima do tapete. Bela porcaria! Terra por todos os lados e uma flor desfeita!

Depois de limpar aquela confusão, pegou no envelope manchado de terra, que acompanhava o presente inesperado. O vizinho, que pelos vistos se chamava Ricardo, para redimir-se do estrago feito à sua sanidade, oferecia-lhe alguns convites para ir ao bar onde ele tocava. O primeiro impulso foi atirar com os convites e a planta para o lixo. Acabou por tirá-los do caixote e arrumá-los a um canto da cozinha, até decidir se ia ou não aceitar o convite.

A curiosidade foi mais forte do que a irritação. No fim-de-semana seguinte, Joana combinou com umas amigas e foi até ao tal bar de jazz. Ficou surpreendida quando ouviu o Ricardo a tocar, pois finalmente o som parecia estar afinado. Confirmou a sua primeira impressão: ele era um homem bastante atraente! A forma como as suas mãos e a sua boca tocavam no saxofone foi o suficiente para a arrepiar.


Quando terminou a actuação o músico dirigiu-se à mesa de Joana com um enorme sorriso. Entabularam uma animada conversa e Joana nem reparou quando as amigas se despediram. Ficaram apenas os dois e ela perdeu todo o rancor que ainda lhe restava pelas horas de sono que ele lhe tinha feito perder.

No final da noite, Joana apercebeu-se de que ele não era um simples músico, mas também o dono do bar. Ficou intrigada, se ele trabalhava de noite e de manhã já estava a fazer barulho, quando é que dormiria? O segredo, confessou-lhe Ricardo, era aproveitar todos os momentos para relaxar e acima de tudo nunca perder o sentido de humor.

Mais uma vez, Joana recebeu o amanhecer acordada, mas ao contrário dos outros dias, não tinha a mínima urgência em voltar para casa. O Ricardo fascinava-a por ser tão diferente dela. Enquanto as horas passaram, entre eles nasceu uma cumplicidade e um forte desejo. Quando o sol surgiu no horizonte, encontrou-os num abraço apertado, os lábios numa entrega total e completamente despertos. Joana descobriu que existem muitas maneiras de recarregar as energias, e Ricardo era a pessoa indicada para a ensinar.