segunda-feira, julho 04, 2005

Na primeira pessoa


A serpente do paraíso

Traição. Uma palavra feia que eu detesto ouvir. Infelizmente, nestes últimos tempos não lhe consegui escapar. Começou no trabalho, pequenas manobras nos bastidores, uns rumores, umas suspeitas. Escolhi uma área complicada para trabalhar, sempre em plena correria, no departamento de marketing de uma multinacional. Adoro aquilo que faço e, modéstia à parte, acho que o faço muito bem. Quando o meu chefe se aposentou, temi que o seu substituto não encarasse o meu desempenho da mesma forma. Qualquer receio que tivesse evaporou-se quando o conheci: Alexandre Ferreira, alto, moreno, uma barba rasa que lhe conferia um ar de desleixo intencional. Todas as mulheres do departamento, aliás, de toda a empresa, ficaram impressionadas com o meu novo chefe.

No início ficava incomodada quando tinha de falar com ele, queria agradar e ficava sempre com a impressão de que ele não me tinha em grande conta. Enfim, mania da perseguição, como diz a minha amiga Mónica. Cada nova tarefa que Alexandre me entregava, executava com afinco e dedicação. Passei a ser a última a sair e a primeira a chegar ao escritório. Mesmo assim, nas reuniões, ele ignorava a minha opinião e dedicava maior atenção às minhas outras colegas. Podia até ser mania da perseguição mas quando comecei a ser preterida em algumas situações, comecei a ficar muito desconcertada.

A Márcia, que trabalha comigo há muito tempo, avisou-me um dia que o Alexandre lhe tinha confidenciado achar-me muito fútil e lenta. Tão lenta que precisava de ficar até mais tarde e vir mais cedo para terminar os trabalhos simples que ele me dava. Essa foi a gota de água! Mudei radicalmente o meu comportamento, e refreei o meu entusiasmo inicial: nada de horas extras! Alexandre desceu na minha consideração, de tal forma que deixei de dar ideias ou sugestões. Limitei-me a fazer aquilo que ele me pedia, dentro do horário normal de trabalho.

Na altura, nem percebi o quanto tinha ficado magoada com o que a Márcia me tinha dito. Além disso, ela era uma funcionária medíocre, que se escondia em subterfúgios para dar a impressão de ser muito competente. E ele foi confiar logo nela! Mal sabia eu que a situação ainda ia piorar. Uma manhã, Márcia voltou à carga e disse-me que ele estava a namorar com a Liliana, uma loira oxigenada, com um cérebro minúsculo, que trabalhava nos recursos humanos.

Nesse dia cheguei a casa de rastos, fartei-me de chorar, sem perceber bem porquê. Foi a minha sábia conselheira Mónica que me apontou a razão: “Estás apaixonada por ele.” Não havia como negar. Estava apaixonada pelo meu chefe, um homem que gostava das mulheres loiras, burras e intriguistas. Ir trabalhar tornou-se um tormento e falar com Alexandre um castigo penoso. Bastava olhar para os olhos verdes que só me apetecia beijá-lo, abraçá-lo e nunca mais o largar. As nossas conversas passaram a ser muito rápidas, uma vez que eu só respondia com monossílabos. Cada vez que o apanhava a falar com a Liliana tinha que sair disparada para a casa de banho, perdida de ciúmes.

Passei a evitar a Márcia, só para não ouvir os comentários ferinos e novidades sobre o Alexandre que me magoavam. Aliás, trabalhar ali, na presença dele e sujeita aos rumores e dissabores constantes tornou-se insuportável. Resolvi pedir transferência para outra filial. O único problema é que Alexandre teria de assinar o pedido formal e a coragem faltava-me para o enfrentar.

Adiei a conversa até ao limite das minhas forças mas, uma tarde, quando toda a gente já tinha saído, entrei no gabinete dele e disse-lhe que me queria ir embora. Nunca me hei-de esquecer do olhar espantado dele, até gaguejou quando tentou falar! O pior foi dar-lhe uma razão plausível, pois ele não acreditou nas desculpas esfarrapadas que lhe dei. “Não devias ligar a tudo o que te dizem.” Alexandre fechou a pasta que tinha à sua frente e encostou-se na cadeira, olhando-me fixamente. Fiz-me de desentendida mas isso não o enganou. Pela primeira vez tivemos uma longa conversa, honesta e cheia de revelações. Afinal, ele até gostava do meu trabalho, sabia que podia confiar em mim, por isso nunca perdia muito tempo comigo. Apreciava a minha dedicação e o meu sentido de responsabilidade e ficara desiludido quando mudei o meu comportamento. Não lhe quis dizer que a Márcia me tinha envenenado de tal maneira que nunca duvidei daquilo que me disse. Alexandre convidou-me para jantar, para ter a certeza de que eu queria mesmo a transferência.

Mais tarde, talvez descontraída pelo vinho, acabei por admitir os boatos e até lhe perguntei pela Liliana. Senti-me uma idiota quando ele desatou a rir à gargalhada e por ter acreditado nas intrigas. Alexandre autorizou a transferência, mas não a minha. A Márcia não ficou nada contente, nem a Liliana, mas o ambiente no escritório tornou-se mais saudável.

Hoje vou trabalhar com empenho, ando sempre bem-disposta e não há cliente que não fique satisfeito. Alexandre já não é o meu chefe, mas em compensação é o meu marido. Cada vez que alguém me vem contar alguma coisa dúbia sobre ele, lembro-me da serpente no paraíso e cedo à tentação de acreditar. É fácil achar que uma felicidade tão grande não possa ser perfeita, e não é, mas existe e nunca será destruída por línguas viperinas de quem não suporta ver-me feliz.

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