Remédio Santo
A sorte dentro do azar
Detestava hospitais, não que tivesse algo contra o serviço prestado pelos profissionais da saúde, apenas odiava precisar desses mesmos serviços. Magda sentia-se como se tivesse sido atropelada por um autocarro. Podia ser exagero, mas era assim que ela se sentia, as dores corroíam-lhe os ossos e diluíam-lhe o bom humor num oceano de fel e irritação. A sala de espera estava apinhada de gente doente, ouviam-se amiúde os queixumes habituais, o que nada contribuía para melhorar a sua disposição.
Volta e meia, uma voz abafada no altifalante, chamava pelos pacientes e indicava a respectiva sala. Nunca mais chamavam por ela e, começou Magda a ponderar, dali a pouco ia começar a delirar com a febre e já não percebia nada do que lhe dissessem. Finalmente chegou a sua vez, levantou-se vagarosamente e avançou cambaleante até à respectiva sala.
O médico parecia demasiado jovem, foi o primeiro pensamento que lhe ocorreu. Meio azeda, esforçou-se para falar, com a réstia de voz que ainda conseguia reunir. Não precisou de falar muito, o médico auscultou-a e mandou-a para as urgências a fim de fazer uma série de exames. “Que bom, mais umas horas à espera e ainda vou ter de tirar sangue.” A sua fobia de agulhas deixou-a em pânico até chegar a hora de a enfrentar.
Duas horas depois voltou à sala e ao mesmo médico, que ainda lhe parecia demasiado jovem. Com um sorriso complacente, o doutor lá lhe diagnosticou uma faringite aguda, e mais uma série de infecções com nomes nada agradáveis. Saiu com uma longa receita na mão e uma vontade louca de se deitar e esquecer-se do mundo.
Quatro dias depois e Magda continuava sem conseguir falar, a febre não baixava e, pelos vistos, a sua faringe não apresentava melhoras. Sem outra alternativa, voltou ao hospital, numa madrugada abafada, talvez resultado da febre alta. Ao entrar na sala deparou-se com o mesmo médico, que ainda se lembrava dela. Após mais uma série de exames e o diagnóstico continuava nada agradável. Desta vez o remédio era em forma de injecções, as suas velhas inimigas de sempre.
Quando voltou à rádio onde trabalhava, ainda meio convalescente, Magda só esperava não ficar sem voz em pleno ar. Ao apresentar o noticiário da manhã, ainda vacilou um pouco mas, pelos vistos, o remédio tinha sido milagroso e correu tudo pelo melhor. No final, despediu-se com um agradecimento ao talentoso médico que a curou. Não deviam existir muitos médicos com o nome de Lúcio, se bem que o sobrenome ficou esquecido no devaneio da febre.
No dia seguinte, ao chegar à rádio, bem cedo, Magda apanhou um susto ao ler os e-mails. O doutor Lúcio, pura coincidência, era um ouvinte fiel das manhãs da sua rádio e ficara lisonjeado ao ouvir o seu agradecimento, ignorando o óbvio tom irónico que ela usara. Perguntava-lhe ainda pela sua recuperação e colocava-se à disposição caso voltasse a ter alguma recaída. Ela ainda hesitou antes de responder mas a sua curiosidade jornalística falou mais alto e acabou por entrar num debate sobre o estado da saúde em Portugal. Aparentemente, o doutor Lúcio tinha opiniões formadas acerca do assunto e a discussão arrastou-se por diversos e-mails, numa correspondência que ela ansiava por receber todos os dias.
Quis o destino, e a sua falta de sorte, que a voz lhe começasse a falhar novamente, desta vez em directo e sem conseguir controlar. Assim que saiu da cabine de som, recebeu um telefonema do seu médico de serviço. Lúcio estava a ouvir e perceber nitidamente o seu problema. Convidou-a a passar pelo hospital, no fim do seu turno, para tratar o problema antes que se tornasse grave. O bom senso levou-a a aceitar a sugestão e lá foi Magda mais uma vez até à, já familiar, sala hospitalar.
Lúcio recebeu-a com um sorriso e tratou-a como se fossem velhos amigos. Afinal não era nada de grave e ele tinha o remédio certo para fazê-la recuperar a voz e eliminar a rouquidão sem dor nem sacrifício. Convidou-a para jantar e depois dar-lhe-ia a receita certa. A ceia provou ser de extremo bom gosto, a companhia era sedutora e a conversa aliciante, mas a voz de Magda não havia meio de melhorar. Por fim, foram até um bar muito apreciado por Lúcio e ele encomendou o dito remédio: um grande cálice de ponche quente.
No fim da noite e alguns remédios depois, ela estava pronta para cantar o fado. É claro que o problema desta vez não era grave, e fora apenas uma desculpa para voltar a ver o seu médico de serviço. Continuava a achá-lo demasiado jovem, devia ser do sorriso traquinas ou do calor que os olhos negros lhe provocavam. Estaria a ficar com febre?
Aquela maleita devia ser diferente das outras, pois a temperatura alta não afectava o termómetro, mas reflectia-se no rubor que teimava em queimar-lhe a face. Lúcio não perdeu a postura, recomendou que continuassem as consultas até uma plena recuperação. Magda só esperava que fossem muitas, essas maravilhosas consultas, desde que não tivesse de voltar ao hospital. Remédio santo, esse médico talentoso, que a deixava nas nuvens, e ainda fazia visitas domiciliares…
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